10 anos de saúde mental

Escrito em 1 de março de 2021


    Em março de 2011 eu comecei a trabalhar como psicóloga em um CAPS AD de uma cidade do interior no nordeste do Brasil. Um ano depois de ter me formado em Psicologia, dois anos depois de ter tido uma experiência de estágio em um hospital psiquiátrico. Para além das questões clínicas e diagnósticas, desde as disciplinas do curso de psicologia que apontavam as questões sociais, comunitárias e do lugar social dos sujeitos, e especificamente, o não lugar de alguns sujeitos, que no social se configurou em um lugar de exclusão, como no caso da loucura, dos loucos - esses sujeitos considerados loucos e dados a eles um lugar de exclusão -, passou a situar um horizonte de atuação profissional para mim.

    Assim, fiz um concurso específico para a área de saúde mental, pensando em ter experiência na área e no que disso poderia advir. Orientada por uma direção psicanalítica, cheguei em meu primeiro trabalho acompanhada do texto de Eric Laurent, O analista cidadão. Hoje, exatamente 10 anos depois de tomar posse neste concurso, afirmo que fui uma analista cidadã, sem nem mesmo saber de início do que se tratava e de só agora, me colocando a escrever sobre, ter me dado conta de tal feito.

    O que seria o analista cidadão? É um sujeito que permeia o mundo do padrão, das regras, dos costumes, da cultura estabelecida e o mundo da singularidade. Permeia escutando e também transmitindo aquilo que é das relações, do humano. Portanto, proponho-me a trazer neste texto, experiências desse meu percurso de 10 anos de trabalho na saúde mental que demonstrem como que na prática tal direcionamento pode funcionar.

    Era como se fosse lugar comum do trabalho de um psicólogo em CAPS realizar o grupo de escuta da instituição. Esse CAPS, especificamente, estava funcionando havia dois anos e já havia uma alta rotatividade de profissionais, sendo que ao menos quatro psicólogos, um de cada vez, trabalhara neste serviço. Logo na primeira oficina do grupo de escuta que realizei, a fala de um usuário me sinalizou a interferência do funcionamento institucional em suas realidades: “Todo psicólogo pergunta da nossa vida, a gente já falou, todo mundo já sabe a história um do outro. Acabamos de falar de novo e quando você sair, ou entrar outro psicólogo, vamos ter que falar tudo de novo. E o que adianta isso? Na minha vida não muda nada”;

    ao que pude escutar e indicar a possibilidade de outra proposta para aquele espaço: “você tem razão, sou eu que não sei, que cheguei agora, que não sabia. Sobre o que falaremos, o que faremos nesse espaço da oficina? Como vocês querem utilizá-lo? O que querem fazer?”. Surgiram ideias de oficinas externas, de não ficar fechado no CAPS, no espaço da oficina, de ir pra a cidade. Além disso, tinha o fato de eu não ser desta cidade, de ser alguém de fora, que não conhecia aquele lugar; e eles foram me apresentar.

    Certo dia, andando em uma das ruas daquela cidade, um outro usuário me questionou: “o que é um psicólogo então?”, contextualizando sua pergunta na comparação com os outros psicólogos que haviam passado por lá e que só faziam oficina de escuta e atendimento individual, ao que respondi que o psicólogo oferece um espaço de escuta, que eles possam falar, que a fala possa acontecer, e que não precisava necessariamente ocorrer em uma oficina, que muitas vezes andar, estar em alguns lugares da cidade podem favorecer a fala, criando um ar de fala e de escuta propiciados pelos acontecimentos da vida cotidiana.

    É claro que tais posicionamentos e novas atividades que inseri naquela instituição foram mexendo na estrutura de funcionamento e nos profissionais que ali estavam, o que gerou uma movimentação de alguns quererem participar e entender que tipo de trabalho era aquele e em outros de receio e insegurança quanto às consequências que poderiam advir, como quais comportamentos os usuários poderiam apresentar fora do que era o normal de antes.

    Foi quando o primeiro usuário relatado aqui, apesar de ter trazido no momento da oficina de escuta que em sua vida não mudava nada falar, solicitou atendimento individual e trouxe a cena de sequestro que estava passando durante todo aquele dia no plantão noticiário da televisão. Quando estavam fechados no espaço da oficina e nas suas próprias vidas não tinham o que falar, a partir do momento em que o espaço se ampliou para o espaço da cidade pôde haver essa intersecção com a própria vida e a possibilidade e necessidade de poder falar.

    A questão dele naquele momento era se fosse ele o sequestrador se eu iria conversar com ele, ao que expliquei a função e serviço público da psicóloga que foi ao local do sequestro e que o meu trabalho era no CAPS, que por isso não era o mesmo, e que eu estava para conversar com ele ali, e sempre que ele precisasse era só solicitar, tendo aquele espaço individual ou em qualquer momento das oficinas. Ele então começou a contar o que tinha lhe ocorrido nas noites anteriores, de sair tentando cometer furtos e/ou atos de vandalismo pela cidade à noite, mas que acabou não cometendo e foi logo cedo para o CAPS e que ao surgir essa notícia na televisão, ele me chamou para conversar. Comentei que ele poderia continuar falando sobre isso, perguntei como ele estava se sentindo depois de falar e ele falou que estava mais tranquilo e pediu para terminar o atendimento.

    Naquele dia, a equipe do CAPS estava sendo supervisionada por profissionais da gestão estadual, uma forma de funcionamento em rede, de um apoio institucional e de educação permanente, algo essencial para o fortalecimento e a continuidade da promoção de saúde da política do SUS. Contudo, considero que por não ter essa noção específica do campo da psicologia sobre a escuta, e mais particular ainda, sobre a função do analista cidadão, a situação foi analisada como um típico caso de “usuário de drogas manipulador que conseguiu enganar a profissional que tinha pouco tempo de trabalho nesta área”.

    A consideração de que é importante que eles falem, que a fala tem efeitos na ação e no porvir, que cada um tem o seu momento e cria seu espaço para falar e ser escutado, foi o que possibilitou a ocorrência e condução daquele atendimento, o que não ocorreria quando os profissionais se colocam no lugar daqueles que conhecem os comportamentos dos usuários de drogas, cortando pela raiz qualquer possibilidade de relação. Trata-se de um reducionismo, e isto não condiz com a direção de um tratamento.

    Já o segundo usuário passou a falar poesias e a escrever, apesar de ter estudado pouco. Eu disse a ele que não dava pra entender muito a letra dele; tentei levar um computador para inserir a escrita digital, mas o computador não funcionou. Ele continuou a escrever e, as palavras que consegui identificar, eu falava a ele, pois parecia que ele sabia falar de cór e escrever as poesias, mas não lia suas próprias palavras. Ele passou a ter vários cadernos de poesia e falei que poderia passar para o computador do CAPS e ele aceitou.

    Certo dia, durante reunião do grupo de família, a irmã dele informou que antigamente ele era conhecido como o bêbado da região que moravam (era um pouco distante da cidade, o que costumam chamar de povoado) e que agora ele era chamado de o poeta da rua. Além disso, esse usuário passou a falar sobre a história do povoado e do terreno que morava que tinha pertencido a Lampião. Após uma oficina externa de visita ao museu da cidade, ele disse que tinha um ferro antigo, da época de sua avó e de sua mãe (como esse usuário já deveria ter uns 40 anos no ano de 2011, a avó e a mãe dele deveriam ter em torno dos 80 e 60 anos, respectivamente), e que iria outro dia ao museu para fazer a doação.

    Para os trabalhadores do CAPS, tal usuário não bebia mais, não era o bêbado, mas tinha enlouquecido de vez, e deveria ser transferido para o CAPS de transtorno. Uma das questões que penso ter conduzido a relação nos atendimentos a esse usuário foi a de considerar que o álcool pode estar servindo a uma função, como a de amenizar pensamentos insistentes, delírios, alucinações, e que, mesmo em uma pessoa semi analfabeta, a escrita pode fazer a mesma função, contanto que alguém possa ler. Falar poesias sem parar, escrever muitos textos; quantas pessoas falam muito, vivem escrevendo, e nem por isso tal situação é considerada como um enlouquecimento?

    Além de questões com os usuários, dos comportamentos, dos tipos de transtornos e de CAPS, também houve uma questão com a realização da oficina externa, por os usuários estarem circulando pela cidade. A coordenação de saúde mental do município passou a querer objetivos, projetos dessa oficina, alegando que as pessoas estariam comentando pela cidade que os usuários estariam fazendo arruaça, como um comportamento descontrolado, quando deveriam estar no CAPS. Apesar do acompanhamento e do relato de outros profissionais do serviço durante a oficina e sobre seu funcionamento, inclusive da própria coordenadora do CAPS, de que transcorria tranquilamente, a oficina teve que ser encerrada.

    Com o tempo fui observando como o espaço interno das instituições de saúde mental tinha alta rotatividade de profissionais e também dos usuários. Muitas vezes a frequência deles parecia meio sazonal, momentos intercalados muito associados a questões alimentares, familiares, de abrigo e com a justiça. Também eram muito comuns situações de conflitos e de violência para serem administrados pela instituição. Questões de saúde, trabalhistas, sentimentais, de um projeto de vida, por vezes eram tocadas no momento inicial de acolhimento na entrada e inserção no serviço, mas que passavam ao largo no cotidiano.

    Diante do que foi abordado anteriormente, é como se os CAPS funcionassem como um mecanismo de controle social da violência; um local onde usuários de drogas – “sujeitos violentos, descontrolados, manipuladores” podem se socializar, se alimentar, conviver em comunidade internamente de uma estrutura física, tempo que estariam fazendo arruaça e sem vínculos de uma estrutura social permanente se não existissem serviços como os da rede de atenção psicossocial. Ao invés de a violência eclodir nas ruas da cidade, essa se transforma em conflitos e comportamentos a serem ajustados e medicados dentro dos CAPS.

    É como se a existência desse espaço físico fosse até aceito socialmente (muitas vezes questões com vizinhos e o bairro em que tais instituições se localizam ainda são presentes), contanto que não ultrapasse suas fronteiras; a ideia de ter um lugar para que algo fique delimitado, não seja ultrapassado. Contudo, dar um lugar para aqueles sem lugar não elimina as situações vividas anteriormente, na verdade parece que são reavivadas, já que estão submetidos a regras de convivência e de funcionamento institucional que aqueles sem lugar parecem nem se lembrar, nem querer lembrar, que um dia fizeram parte de uma casa, de uma família, podendo remontar a questões constitutivas da infância e da adolescência.

    Dessa forma, só o trabalho com cada um pode configurar uma sociedade sem manicômios, já que a nível institucional houve uma mudança de estrutura física e externa, que ainda não se transformou em uma mudança estrutural porque não é o ter lugar que vai resolver o problema dos excluídos. A realidade externa não se transforma em realidade interna sem fala, elaboração e escuta. A fala, elaboração e escuta retira tais usuários do rótulo da doença, e portanto, de um espaço fechado e que por vezes vai se configurando em uma tutela.

    Neste percurso de 10 anos na saúde mental percebo uma relação entre a exclusão e a questão simbólica, muito presente na população brasileira como um todo, como a falta de recursos simbólicos desemboca em uma prevalência do imaginário, acarretando em violências, dificuldade de relacionamentos – trabalho, pessoais – levando a situações de pobreza, exclusão e muitas vezes são as substâncias psicoativas os recursos possíveis e presentes, tanto de facilidade quanto financeiramente, para lidar com tantos sintomas e questões.

   


Autora: Ingrid Soledade Guimarães

Link para citar o texto: www.portalaurora.com.br/10anosSaudeMental

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